Como Fonte Selada



“... Clara foi a nova mulher do vale espoletano, que abriu uma nova nascente de água viva...
já derramada em vários regatos no território da Igreja!”(Bula de Canonização)


Como Fonte Selada

A Fundadora das Irmãs Clarissas



Título original: “Come fonte sigillata” Editrice Ancora, Milano 1982
Tradução: Irmã Sandra Maria Soligo 1985 – Mosteiro Nazaré - Lages


Onde Deus escavou o poço

Quando Deus terminou o céu e a terra,
as plantas e os animais, o homem e a mulher,
e  viu que “tudo era muito bom”,  Gn 1, 31     
fez uma coisa nova: inventou o repouso.
Não era propriamente o doce fazer nada,
não havia nenhum sabor de cansaço,
não possuía o enfado de nossas tardes dominicais:
era simplesmente o estupor amoroso de Deus,
frente à beleza brotada de suas mãos,
o seu olhar sorridente sobre a bondade das coisas.
Era uma vida diferente: a vida contemplativa.
Deus não queria somente para si este privilégio
de gozar, do alto, de todas as maravilhas
onde deixou refletida a sua imagem.
É uma necessidade do amor condividir a alegria.
E Deus chamou o casal humano,
no qual beleza e força faziam síntese,
e convidou-o a participar da festa.
O homem e a mulher recusaram o convite
quando pretenderam fazerem-se ‘deus’ com as suas próprias mãos.
E, desde então, a humanidade não conhece mais repouso.
Mas Deus, que não renuncia nunca à alegria,
tentou de muitos modos convencer o seu povo
A deixar o Egito de obras cansativas
para “celebrar uma festa no deserto”, Ex 5,1
junto com Ele , na intimidade do amor.
Mas esse preferiu as cisternas rachadas
de seu inútil afã,
à fonte de água viva da contemplação de Deus.
Por isso, Ele “jurou no seu furor:
Não entrarão no lugar do meu repouso”. Sl 94,11
Então Deus sonhou o Homem novo e a Mulher nova
e o seu sonho fez-se carne em Jesus Cristo,
no seio de uma humilde jovenzinha: Maria de Nazaré.
O casal regenerador do novo povo de Deus
conheceu a estrada do deserto – angústia e solidão –
antes de alcançar a terra prometida do repouso,
e tornar-se modelo da humanidade do ‘sim’
ao longo do tempo para a Igreja em caminho no mundo.
É sobre este caminho que se entrelaçam as vidas
de Francisco e de Clara de Assis, o homem e a mulher
chamados juntos a proclamar o Amor que cria e se repousa,
que salva como Cristo e regenera como Maria.
Não se compreende o misterioso fascínio do ‘poverello’
sem a secreta beleza de Clara;
não está completa a sua mensagem eloqüente,
se não se compreende que esta mesma Palavra
se encarnou também, e silenciosamente, nela.
A água  purificadora e fecunda da simplicidade evangélica
que Deus quis derramar sobre a terra ressequida do século XIII
em um dilúvio benéfico que dura até hoje,
brota do sorriso de Clara no coração de Francisco.
A este, como ao primeiro homem, o Amor se revela
como convite ao repouso, ao louvor,
à ação de graças: um convite à contemplação.
Quando Francisco começou a restaurar a igreja de São Damião,
respondendo com zelo de menino ao chamado do Crucificado,
é que Deus estava ali, escavando o poço
de onde jorraria a veia de água contemplativa
da Senhora Clara e de suas irmãs.
É ali que a visão profética
de “mulheres santas e famosas” Testamento de Santa Clara 14
chamadas  juntamente com ele, por um único carisma,
a serem  “um povo humilde e pobre”,  Sf 3,12
“felizes de não possuir nada além de Deus”,  Legenda Perusina
o exalta e lhe assinala o espírito para sempre.
Francisco e Clara: esta nova edição atualizada e gratuita
da incessante obra criadora e redentora de Deus,
onde, não por acaso, não paralelamente,
mas segundo a misteriosa e inefável reciprocidade,
que sela o relacionamento homem - mulher,
a mesma experiência de fé, a idêntica seiva contemplativa
tomando diversamente corpo, forma e matiz.
Francisco e Clara: o novo casal
em cuja unidade humana aparece, em transparência, o divino;
ele, o sol inflamado do amor paterno de Deus,
ela, a água regeneradora do amor materno de Deus;
ele, queimado do desejo de contemplação
no seu incansável peregrinar de apóstolo,
ela, transbordante de ardor missionário
na silenciosa fecundidade de uma existência escondida.
Porque o amor é assim, quando é verdadeiro amor:
pede a luta e a quietude, a busca e o repouso,
o olhar adorador e o gesto operativo.
Não que Francisco proclame apenas uma dimensão e Clara a outra:
ambos são síntese viva e palpitante
de contemplação e ação,
mas o acento tônico de sua vida cotidiana
respeita a sua condição de homem e mulher
projetada no albor do mundo,
quando Deus presenteou ao casal humano
o paraíso para o tempo do trabalho,
e o repouso para o tempo do amor.
E Clara, que amou definir-se
“plantinha” de Francisco,  Testamento de Santa Clara 37
quase surgida dele como Eva da costela de Adão,
compreendeu e viveu o seu compromisso de mulher
à insígnia do ‘sétimo dia’.


A nascente secreta

Como a  água é o berço  e o alimento da vida
na  ordem da natureza material,
assim é a contemplação na história da salvação.
Deus, que não faz nada de incompleto ou de inútil,
quando quis fazer florescer novamente o deserto do mundo,
fez surgir o sol de Francisco, novo Cristo,
enviado como “valente que percorre o caminho”  Sl 18,6

a anunciar o Evangelho de paz e fraternidade,
e fez jorrar a água de Clara, a “cristã”,  Crônica de Frei Estêvão de Narni

qual “fonte selada” em “jardim fechado”   Ct 4,12
da vida contemplativa claustral.
Não porque faltasse a água sobre a face da terra,
ou as torrentes do Espírito no oásis da Igreja.
Mas nem toda água dessedenta e vivifica:
à sede ardente do homem não basta a imensidão do mar,
ainda que possa nele mergulhar a bel-prazer;
não basta a enchente caudalosa dos  rios,
nem o rumor da chuva ou a calma insidiosa dos lagos.
Na verdade, o amor é como a água:
contém os ímpetos e as ondas enganosas da superfície,
mas tem a sede de qualquer coisa de profundo.
E quando o homem tem sede, escava um poço:
a água mais pura está escondida lá embaixo, na terra.
E é pura, porque vem de longe,
do beijo do sol enamorado à neve intacta dos montes,
do seu derreter suave, lacrimejando, a primavera,
da sua renúncia à luz fascinante do aparecer
para deixar-se escorrer na sombra, misturada de barro,
filtrada pela rocha desmoronada ou compacta,
até alcançar o fundo do vale.
Lá onde a água irmã desce saltitando ao aberto,
esta permanece escondida sob a terra, em espera.
É ali, na escuridão da fé que não exige ‘porque”,
no anseio perseverante da esperança,
na brandura silenciosa do amor,
que se prepara a nascente secreta que um dia uma mão
levará finalmente à luz, para a sede de tantos.
Assim, simplesmente, foi a vida de Clara:
primeiro, neve imaculada sobre o cimo de nobre família,
sobre o qual se elevou, fúlgido, de repente,
o sol de Francisco, “cujas palavras
lhe pareciam labaredas”,  Legenda de Santa Clara 5
e toda a envolviam com a doce loucura de seu amor.
E ala aceitou, com alegria audaz e generosa,
que o sol não brilhasse na fronte
a apresentá-la ao mundo, como toda mulher amada
ambiciona aparecer, escolhida entre todas, junto a um homem.
Ela desceu humilde, vestida da cor da terra,
no poço silencioso do claustro de São Damião,
que as mãos dele, pobre trabalhador de Deus,
haviam aberto para ela na planície ridente de Assis;
e jorrou como nascente secreta e fecunda,
onde os filhos e as filhas de seu único Amor
pudessem atingir, seguros de toda a poluição,
“a água viva que jorra para a vida eterna”.Jo 4,14
Não havia na intenção de Clara,
como em toda autêntica escolha de vida contemplativa,
nem receio desdenhoso do mundo
ou medo de um empenho familiar,
nem reserva orgulhosa de sua própria pureza intocável
ou pretensão de fechamento religioso.
Contemplação não é narcisismo ilusório,
dobrar-se ao “eu” perdido atrás da própria imagem
trocada por aquela do amado.
não é reflexão sobre si, tão tola se colorida de vaidade,
como nociva se voltada ao auto-complacência.
Contemplação é olhar que cruza com outro Olhar,
no qual a alma, esquecida de si,
se aniquila e se recria,
grata no receber-se a cada instante como dom,
humilde na oferta de si como resposta.
E Clara experimenta como “o seu amor faz feliz,
a contemplação restaura,
a benignidade sacia...”  Quarta Carta a Santa Inês de Praga 11-12
Contemplação não é, por isso, passividade ou inércia,
nem tanto menos resignação a não amar
ou renúncia à fecundidade do próprio ser.
A água que está escondida no fundo do poço,
ainda que imóvel,
não é água estagnada, que apodrece:
conserva-se fresca e potável para o seu dom,
mesmo que não conheça o rosto de quem a bebe.
É como a semente evangélica jogada na terra escura
que aceita apodrecer só para dar mais frutos.
Assim a nascente secreta da Senhora Clara,
doada a Francisco em bíblica “ajuda” e complemento, Gn 2,18
ofereceu ao mundo a água mais límpida e fresca
que os séculos, pasmos,
ainda não findaram de apreciar.


Louvado sejas, meu Senhor, pela Irmã Água


Um dia, quase próximo à morte,
o ‘Poverello’ de Assis, chagado no corpo e no espírito,
retorna  a São Damião como o sedento à fonte,
e na obscuridade de sua noite física e moral,
imerso no clima contemplativo do pequeno claustro,
entoa o luminoso “Cântico do Irmão Sol”,
onde o reconhecimento e o louvor se fazem poesia,
e a dor se transfigura em notas de alegria.
E enquanto traça amorosamente a beleza das criaturas,
restituindo-as a Deus, como nos dias do Éden,
através do seu coração de homem novo,
descobre-se a cantar comovido nos louvores da água
a doce figura de Clara,
tão sua, ainda que nunca possuída,
tão única na sua fidelidade sem manchas.
Talvez Francisco não saiba, desconhecendo o seu dom,
de haver abrangido em quatro palavras despretensiosas
as qualidades excepcionais da água que é Clara
e a experiência original de sua vida contemplativa.
Mas juntamente revela, discreto,
a sua ligação profunda e pura
com a mulher que mais partilhou, no espírito e na carne,
a sua aventura evangélica até o fundo.
Ele a distingue como límpido riacho de água
e a vê desaguar no oceano de Deus, amável e amada;
isto lhe basta para render-lhe graças porque existe.
“Louvado sejas, meu Senhor, pela irmã Água,
a qual é muito útil e humilde
e preciosa e casta”.
A experiência contemplativa de Irmã clara está toda aqui:
uma mulher paradoxalmente mais útil em sua clausura,
mais livre na humildade de sua obediência,
mais rica e preciosa na sua “altíssima pobreza”, Forma de Vida 6,6
mais fecunda no seu amor casto e virginal
que qualquer filha, esposa e mãe de rei.


...útil no escondimento

Ao olhar imediato, é mais fácil descobrir
a utilidade da água que saltita na superfície, ao alcance das mãos,
do que daquela que dorme no profundo da terra.
Tão fácil é, num mundo como o nosso,
onde a utilidade se infiltra
até nos meios humanos mais sagrados,
a indagação um pouco cética sobre a existência das claustrais.
Se, de fato, não as situa singelamente
na categoria dos parasitas ou dos loucos inofensivos,
tacha-as, ao menos, de anacronismo imperdoável:
clausura e grades são coisas de outros tempos.
Os bem-pensantes menos desprovidos em matéria religiosa
chegam até a sugerir  um empenho mais útil
do que essas forças do amor desperdiçadas no silêncio:
“com tanto bem que se pode fazer na sociedade...”
Mas os bem-pensantes raramente são benfeitores:
Pensam no bem que podem fazer aos outros.
Se Clara de Assis é de outros tempos,
não compartilha o tolo medo da inutilidade
que aprisiona o espírito contemporâneo até o suicídio,
ela que se sente escolhida
“para um compromisso tão elevado”
como é aquele de “resplandecer como espelho e exemplo
para todos aqueles que vivem no mundo”. Testamento de Santa Clara 20-21
Mulher-água, mulher-espelho: eis Clara de Assis!
Como é útil o espelho o sabe toda mulher
quando se confia às suas revelações,
para que não falte à sua beleza natural
o toque de perfeição da arte.
Se Clara se sente e se admite como mulher-espelho,
não é certamente porque está sobre a praça do mundo,
como as vitrines, ante as quais param as pessoas admiradas.
Sabe estar reclusa como espelho em um estojo
onde toda mulher pode ver refletida a sua imagem
apenas ouse transpor o limiar do silêncio
e deixar florir no íntimo a voz do Amor.
Isto acontece porque também ela se espelha por inteiro
no coração de Francisco,
“ouro tão claro e puro” Processo de Canonização de Santa Clara 3,29
no qual vê resplandecer o Cristo pobre,
o Cristo crucificado, “espelho sem mancha
no qual todo dia perscruta
continuamente o seu rosto”, Quarta Carta a Santa Inês de Praga 14 
e é no êxtase desta contemplação
que ela se transfigura até a transparência,
feita ela mesma “espelho de vida”  Bula de Canonização 10
de reflexos infinitos.
Útil, portanto, ainda que escondida,
Clara, como a água que está lá onde não aparece,
entre as áridas rochas,
alimenta a vida de uma simples flor selvagem
ou faz brotar entre as areias do deserto
o maravilhoso encanto de um oásis verdejante.
São as forças escondidas aquelas que realmente valem,
como o fermento evangélico
que desaparece na massa de farinha
mas, pouco a pouco, fermenta-a toda
e a faz crescer para o pão crocante de todo o dia.
Lá onde esconde-se o sinal de exterioridade
existe interioridade maior, quando o amor está presente.
Então, se a contemplação é um olhar de amor,
a clausura é a sua necessidade de intimidade,
é o ponto de limite entre o espaço profano e o sagrado,
lá onde o encontro que se celebra reclama solidão
e silêncio de escuta e puro gesto de oferta.
De acordo que o amor verdadeiro,
sobre o mercado do mundo de hoje,
não tem absolutamente as conotações do útil:
não serve para fazer dinheiro nem carreira,
não serve nem à ciência nem à política.
‘Elogio da loucura’, escrevia o bom Erasmo.
Se o amor é inútil, Clara escreveu com sua vida
o melhor elogio do inútil.
Mas o amor não serve porque reina.
Ele transpõe as grades, quando é autêntico.
Elas delimitam uma separação que não divide;
são somente o símbolo visível,
daquele invisível sinal de pertença
que todo amante sonha para encerrar a amada
na unicidade de seu relacionamento de amor.
Sempre ele a quereria ter para si,
longe dos olhares dos estranhos, em um silêncio fecundo.
O reino do amor está lá, onde faltam cálculos e medidas,
onde o espaço restrito de uma pequena cela
pode dilatar-se sobre os horizontes do mundo,
onde basta um suspiro para derramar-se a alma
e um sorriso doado para dar sentido à vida.
Isto que impele Clara a recolher-se atrás de uma porta para sempre,
não é certamente medo, é resposta ao Amor
que a convida ao colóquio “em segredo”   Mt 6,6
e lhe cava  interiormente um abismo de liberdade.
Mas não se pode impedir ao perfume de expandir-se,
nem à água de jorrar e correr sobre a terra.
Prisioneira de amor, Clara “se conservava reclusa
no escondimento da vida claustral,
e fora irradiava esplendor luminoso;
recolhia-se num austero mosteiro
e fora se expandia na vastidão do mundo...
Clara calava, mas a sua fama gritava.” Bula de Canonização 3
E o eco daquele grito chegou até nossos ouvidos.



...humilde na obediência

Há palavras, ante as quais hoje,
dado o clima explosivo de pretensa liberdade,
nos vem de torcer o nariz:
humildade e obediência, por exemplo.
Das idéias distorcidas dos filósofos contemporâneos
surgiu o slogan: “dizer não é bom”.
Certamente, nos tempos de Clara,
se estivesse ainda ingenuamente convencidos
que o sim fosse a nota mais alta do traço musical do amor,
e saber cantá-lo para sempre era belo.
Porém, a liberdade não estava menos no coração
então que ao homem de hoje, e se há um exemplar
em que a liberdade se desposou à mais humilde obediência,
é verdadeiramente Francisco de Assis,
livre de voar no céu como uma cotovia,
livre como a água de percorrer a terra.
Humilde a água, porque obedece a toda forma,
e também livre porque nenhuma a constrange.
Humilde, porque a serviço de todo homem
e livre, entre os elementos, como o ar.
Humilde, porque dócil e sem resistência:
não teme de perder-se enquanto se doa.
Se humildade é verdade do próprio ser,
então obedecer é simplesmente gratidão:
reconhecimento de ser somente criatura,
consciente do próprio fundamento em Outro,
a quem se torna necessário abandonar-se.
Todo amor pede o voto de obediência
e é suprema liberdade este render-se totalmente ao amado,
esta paixão absurda de fazer-se seu instrumento,
seu brinquedo, seu joguete, enfim, mas seu.
‘Ama e faz e aquilo que queres’, disse o grande Agostinho,
mas aquilo que fazes então, é aquilo que quer o Amor.
Porque liberdade não é a possibilidade de dizer sim ou não;
isto é apenas um limite da natureza humana,
a raiz de sua vontade, como o é de sua inteligência,
das forças, dos sentidos, de todo o ser finito.
Liberdade é plenitude do ser que é tudo e somente ‘sim’.
Eis porque aceita de fazer-se obediência,
lá onde a triste força do ‘não’, rebentada do pecado,
abre-se sobre o reino do nada, da desesperação, da morte.
Então, a renúncia a dizer não é afirmação.
Quando a água se solidifica no gelo, não corre mais,
perde a transparência e a desenvoltura,
se faz impenetrável e dura: não se pode mergulhá-la,
não dessedenta mais os rebentos da terra: mata-os.
Assim o eu que se enrijece na desobediência:
perde a verdade de si que o faz humilde e livre,
perde o contato com os outros que o faz doce e amante.
Clara quis precisamente permanecer líquida
e pura como a água, humilde e corrente
porque constantemente ela mesma,
quando fugindo da casa paterna ao encontro de Francisco,
com alegria “livremente lhe prometeu obediência”. Testamento de Santa Clara 25
Ela não pretende ter consistência própria,
como a água que não tem nem sabor, nem forma, nem perfume.
Ela, que como mulher é puro acolhimento e abandono
sabe que só a obediência abre-a à liberdade da fé.
Crer, na verdade, não é tanto dar o consentimento a uma idéia;
é muito mais a confiança da criança ao amor fiel do pai,
como o Filho de Deus que serenamente pode dizer:
“Meu alimento é fazer a vontade do Pai”  Jo 4,34
e abandonar-se à morte de cruz,
com a mesma desconcertante doçura
de criança que dorme nos braços da mãe.
Crer não é perguntar ao amado: ‘Aonde me levas?’
mas é implorar humildemente que em toda parte me leve consigo.
Crer é o vôo do pássaro no ar que o sustenta
e o flutuar da flor de lótus
sobre a água que a carrega e nutre;
é o lançar-se em total abandono: tal é obedecer.
Porque a obediência não é gesto de resignação passiva,
ou simples declaração de impotência, de carência,
ou dependência servil para cômodo alívio de responsabilidades.
Somente ao Amor e por amor se pode verdadeiramente obedecer;
e se aquele que manda não faz as vezes do Amor
e se aquele que obedece não responde como ao Amado,
não se dá obediência nem humildade e liberdade verdadeiras:
há somente, de um lado, a mentira da prepotente afirmação de si,
e de outro a mentira da desesperante negação de si.
Clara compreendeu que obedecer não é algo para súdito,
como se quem está a frente não devesse obedecer;
porque, se a obediência é serviço de amor,
obedecer é de rei.
E quando é solicitada de por-se à guia de São Damião,
se dobra à obediência não sem “temor e tremor”
e depressa torna-se a “serva de todas as irmãs” Forma de Vida 10,5
e humilde pede a elas que “lhe prestem obediência
não tanto pelo oficio que ocupa, mas por amor”. Testamento de Santa Clara 61
Há alegria e concórdia em família
quando o amor faz com que cada um esteja atento ao gesto do outro,
e cala toda pretensão de primado e de reivindicação.
Mas sempre  ao amor, é legada também a dor,
Porque é pagando o preço da ruptura do invólucro finito
que o homem alcança o infinito de sua liberdade.
Clara o sabe, porque longamente contemplou o Cristo,
aquele que mesmo “sendo o Filho,
aprendeu todavia a obedecer pelas coisas que sofreu”. Hb 5,8
E sabe como custa a luta para permanecer fiel
a quanto prometera a Francisco diante de seu Deus,
quando, da própria cátedra de Pedro, que venera e ama,
vem-lhe a súbita tentação de diminuir o preço
de sua escolha evangélica da mais radical pobreza.
Clara, a dócil, Clara, a fonte de humilde água,
não desejosa de algo senão de derramar-se para servir,
Clara, que quis as filhas “súditas sempre, e sujeitas
aos pés da santa Igreja”,   Forma de Vida 12,13
 torna-se inflexível rocha  e grito elevado no ‘não’
apenas se trate de eludir  a obediência ao Amor:
“É preciso obedecer antes a Deus que aos homens”. At 5,29
E que suplício profundo para a alma
quando se vê arrancar a um amor por um amor maior!
Mas lá onde está a salvo a essência,
onde o valor absoluto está seguro de traição,
então permanece o espaço para a humilde obediência,
para a escuta confiante e a acolhida
de cada ação humana,
das coisas, enfim, dos acontecimentos, como Francisco
que se fez “menor”   Regra não Bulada
e submisso a toda criatura,
e a quem obedeciam como por encanto
os peixes e os pássaros.


...Preciosa na pobreza

Quanto é preciosa a água, nem sempre o sabe quem a usa,
para as suas necessidades cotidianas da vida,
com o hábito da abundância
que esquece o valor de um bem.
Francisco certamente devia conhecê-la melhor,
ele que havia deixado os confortos do armazém paterno para fazer-se
peregrino enlameado sobre as estradas do mundo.
Eis porque sente a preciosidade de Clara,
como um viandante aprecia a nascente de água que assoma,
sob a qual pode colocar, enfim, depois de tanto caminho,
os pés doloridos e a boca ressequida.
Pode-se ficar longo tempo, também, sem alimento,
mas não sem Água.
Quanto ao ‘Poverello’, “ninguém mostrava
o que devia fazer”, Testamento de São Francisco  
entre tantos irmãos e amigos
que tinha em torno de si,
quando o ‘o que fazer’ tocava o ser de sua vocação,
e se tratava de decifrar o horizonte de sua utopia,
ele recorria à água da contemplação de Clara:
ela, a mais pobre, ela, a mais preciosa.
Há um modo de ser pobre que não enriquece,
que não faz procurar a pessoa como se guarda um tesouro.
Dá-se uma pobreza triste e irritada,
lá onde a homem joga a sua realidade sobre o ter,
e mede a sua própria indigência sobre o domínio dos outros.
Não é pobreza preciosa a simples ausência de bens,
se não é contida de paz e de alegria interior.
Mas, se a pretensão do ter é uma atitude do rico,
pode ser igualmente o dar,
também se dito ‘condivisão’ com os pobres.
A suficiência do dom é ainda enganadora riqueza,
da qual não é fácil despojar-se,
nem a quem está na miséria.
Saber receber é, então, a essência da pobreza,
porque também quando se doa se recebe a graça de doar.
A pobreza de Clara é, assim, preciosa como a água
porque fala da simplicidade do ser,
totalmente esvaziado de si mesmo,
negligente de todo direito próprio, até aquele de existir,
de não querer outro “privilegio”, Legenda de Santa Clara 40
exceto aquele inaudito de nada possuir,
e de render graças com alegria quando recebe a doar.
Porque toda tristeza vem do dar e do ter,
mas se há alegria, é no receber e no ser.
Clara é como a água: preciosa, se quem a busca é pobre,
ainda que pobre ela mesma na sua composição;
pobre, porque não desdenha de misturar-se à terra,
mas preciosa porque, mesmo apenas poça, sabe receber o céu.
A pobreza da qual se enamorou o jovem Francisco,
aquela que levou Clara a fugir de casa
e a comprometer-se tanto com aquele tolo cantor de Deus,
é canção de liberdade infinita, é imitação do amor.
O amor, em sua natureza, é pobre porque nada deseja
afora amar e ser amado, sem fim.
Ainda mais: o amor se faz pobre porque se gasta,
se oferece, se lança sem cálculos, pretensões, seguranças.
É verdade que se alguém não se defende, se é pródigo de si,
se abusará dele, despojando-o de tudo, até da vida;
mas não há preço alto demais para a beatitude
de perseguir o amado até à identidade.
Aquele que se faz pobre por Cristo
pode tranqüilamente ignorar a si mesmo
não menos que as coisas;
pode abandonar tudo, porque tudo espera:
tudo lhe será dado.
Escolher a pobreza como “a esposa
mais nobre e bela” vida I, Tomás de Celano
é para Francisco, afirmar esta liberdade da esperança
que é adoração suprema do Onipotente
cuja presença e cuja posse é riqueza inestimável.
Assim também, para Clara, a pobreza não é condição causal
de sua livre escolha contemplativa:
nem é a sua essência.
Somente um coração pobre e criança
pode permitir-se o luxo de contemplar
porque é livre de maravilhar-se na escuta do outro.
Quem possui riquezas materiais a defender
ou vive preocupado com sucesso e fama mundanos,
não tem tempo e forças e fantasia e sorriso e lágrimas
para percorrer os caminhos do amor e da liberdade.
Clara pode acender-se como chama contemplativa
na intimidade orante do pequeno coro de São Damião
e consumar-se diante do Amor crucificado e feito Pão,
somente porque a pobreza, fiel serva, lhe guarda à porta.
Não é a sua uma pobreza de comodidade:
não deixa de trabalhar;
é audácia de confiar janto ao Pai dos céus,
mais que “as aves do céu e os lírios do campo”; Mt 6, 26.28
é força de proclamação a todo o mundo
que o homem verdadeiro, o homem liberto,
é como o Filho de Deus:
rico somente de toda doçura do amor,
que ignora o medo e a defesa e se deixa ‘comer’,
rico somente de toda a força do amor
que vence o adversário com a humilde doçura do perdão.
Clara sabe que “o homem coberto de vestidos
não pode pretender lutar com um nu” Primeira Carta a Santa Inês de Praga 27
 e que o amor exige o despojamento
para a comunhão com o amado.
Talvez estivesse lá, quando Francisco se despojou de tudo,
ao pé da letra, quebrando os laços do sangue,
e talvez assim, “nu das coisas do mundo”,
confiado a providencial e doce paternidade de Deus,
vestido, como uma flor, somente de sua glória,
pareceu-lhe o mais rico e o mais liberto dos filhos de rei.
Mas foi ela a encarnar, como ninguém,
a imagem doce e amada da Senhora Pobreza.


... Casta no Amor

O que é ser casta hoje, numa atmosfera poluída
onde nem mesmo da água que se bebe pode-se garantir a pureza, é difícil dizer.
Certamente quando Francisco canta a água casta
a vê luminosa sob o sol, como borrifos de cascata,
ou límpida, calma e transparente no fundo do poço
onde se espelha a lua nas noites serenas,
e pensa em Clara no seu esplendor de mulher intacta,
na sua suave beleza de virgem-esposa-mãe.
Ele admira e respeita o  mistério como respeita a água,
ele que “quando se lavava as mãos escolhia um lugar onde a água
não ficasse esmagada sob os pés”. Legenda Perusina
Assim pôde mergulhar as mãos na torrente de Clara
e inebriar-se de sua fresca pureza,
sem esmagá-la sob os pés de uni domínio abusivo do sexo;
e ela, no estremecimento de amor que toda a percorreu,
acolheu-o sem querer mantê-lo para si
e, como os “puros de coração” se tornou “bem-aventurada”
porque, olhando-o, “viu a Deus”.  Mt 5,8
Não é o ser casto um gesto de renúncia a vida,
ao relacionamento de amor, à própria inteireza, à síntese
que de um homem e de uma mulher faz a única imagem de Deus.
Castidade é integridade do ser que alcança a plenitude
mas não está reduzido ao limite da individualidade.
Casta é uma mulher virgem, não porque ainda de ninguém,
não porque estéril ou frígida, incapaz de gerar.
Casta é aquela que é tanto mais virgem quanto mais é esposa e mãe
e se não se fecha a um relacionamento físico finito
é porque se abre ao relacionamento infinito de amor,
que quando a fecunda com o seu sêmen de vida imortal
restitui-a toda vez à sua integridade.
Assim puro regaço e acolhimento é uma mulher,
e Clara realiza o seu ser completamente.
Não sai da linha de sua feminilidade consagrando-se a Deus;
entra, porém, sempre mais nela, até o fundo
levando dentro de si o sinal do fogo do amor.
Casta como pomba, ela é verdadeiramente esposa e mãe,
porque vive a sua condição de mulher
em comunhão com Francisco,
“sustento e única consolação depois de Deus”. Testamento de Santa Clara 38
Clara não se sente  chamada à parte,
para se beneficiar privadamente de uma concessão especial
de intimidade com Deus, separada do outro,
como se as potencialidades do amor do ser consagrado
fossem destinados à atrofia, à esterilidade.
Ela revela que somente o coração puro é livre de  amar verdadeiramente
sem manchar o outro com o próprio egoísmo,
sem pretender nada, sem retornar sobre si.
Clara não perde o toque de ternura de sua sensibilidade aberta e cristalina
e não teme derramar sobre  Francisco  as suas primícias afetuosas,
enquanto com ele compartilha a fadiga do amor.
Não há talvez presença mais aguda de espírito à geração física, em uma mulher,
como aquela do corpo de Clara, à gênese espiritual da família de Francisco,
ela, que macerada pela enfermidade e pela penitência,
viveu na sua carne a violência dolorosa
de um parto que deu à luz uma prole sem número.
Aqui o amor de Clara é límpido como a água de um lago,
que permanece imóvel e fluida sob os raios do sol,
onde a encrespatura serve somente para irradiar o reflexo
para pontos infinitos do horizonte;
e a água desaparece à vista, encoberta pelo esplendor.
A castidade de Clara permanece um sinal profético na Igreja,
propriamente porque ela não perde a identidade de mulher,
complemento e ajuda integral para o homem,
especialmente na fidelidade dedicada de sua consagração,
que, se a separa da linha comum natural
é somente para indicar o futuro ‘comum’ sobrenatural.
Porque tal será o relacionamento de amor no reino dos céus,
“onde não se toma nem mulher nem marido”: Mt 20,35 
um fluir do ser pacificado e intacto
para o centro vital da pessoa amada, onde se imerge,
como um doce expandir-se de nardo perfumado
que alegrará a sala daquele banquete de núpcias.
A sexualidade é do tempo, faz a história,
mas o amor é o eterno da pessoa, e o que pede
é a comunhão profunda e sem fim na liberdade.
Clara ultrapassa o transitório para fixar o eterno
e feita mulher nova - nova Eva e mais, nova Maria -
simplesmente alcança o homem lá, no coração do Amor,
lá onde ambos são postos “como selo”. Ct 8,6
Ela, como Maria, vive num equilíbrio admirável
o paradoxo desconcertante de ser virgem-mãe.
Como Maria, “que no pequeno claustro de seu seio
recolheu e no seu corpo virginal carregou
Aquele que os céus não podem conter”, Terceira Carta a Santa Inês de Praga 18-19 
Clara contém em si o infinito de um amor transparente
que no seu coração virgem, isto é, livre de tudo,
e ao mesmo tempo materno, isto é, dedicado a todos,
deixa entrever o milagre da Encarnação.
Porque, se é maravilha que Maria, mulher cheia de graça,
possa permanecer virgem, mesmo tornando-se mãe do Verbo,
é mistério inefável de cada mulher consagrada
que somente permanecendo virgem, torna-se seio do Amor,
na alegria dolorosa de uma maternidade inexausta.

De sua plenitude temos recebido
graça sobre graça...

Quando urna água abundante invade e enche
o pequeno ou grande recipiente que a acolhe,
transborda e inunda tudo em torno,
em riachos frescos e em cascatas cintilantes
como por um exultar de plenitude e de alegria incontível.
Transbordar é sinal de abundância e de fecundidade.
A água da vida contemplativa de Clara,
cantada por Francisco nas suas notas características,
jorrou nos séculos sem  descanso
dentro de vasos preciosos ou de humildes fragmentos de barro
de outras mulheres enamoradas, que ao seguimento dela,
tem conservado límpida a fonte selada de São Damião
a fim de entregá-la qual resposta
à sede ardente do ser humano de hoje.
Porque a sede do absoluto não se extingue
com a oferta no tempo
de muitas e várias bebidas feitas à medida do ser humano;
e aos sofisticados coquetéis das ideologias e das praxes,
que a história serve com ritmo alternado,
se prefere, a um certo ponto, retornar à água pura.
Profetizava Nietzsche, de seu ângulo de lúcida loucura:
“São talvez as vantagens de nosso tempo que trazem consigo
uma temporânea sub-apreciação da vida contemplativa...   
Mas os seres humanos serão tomados
por uma inquietação de recolhimento
e de concentração sem precedentes,
uma vez que ficarão cansados da pressa moderna.”
E é mesmo assim: quando se tem feito tantas estradas,
ziguezagueando no deserto sem encontrar uma saída,
parece um sonho redescobrir uma fonte de água
e sentar-se junto cansadamente e ouvir o seu gorgolejar.
Se a vida abundante, jorrada do encontro distante de Clara e Francisco de Assis,
não findou de correr como seiva escondida e benéfica,
quer dizer que um Amor infinito opera, agora como então,
à raiz de sua indissolúvel unidade.
Assim, a experiência de fé, de esperança, de amor
vivida por Clara no doce silêncio do claustro
tornou-se “graça sobre graça” para as filhas presentes Jo 1,16
que guardam em mãos fiéis a chama de sua herança.

A graça do louvor

A vida contemplativa das Irmãs Pobres
escande-se, até agora, pelo ordenado alternar-se
do tempo de silêncio e de oração, de repouso e de trabalho,
que substanciava o ritmo cotidiano das primeiras damianitas.
O abandono filial do voto de obediência,
a confiante esperança da mais despojada pobreza,
a pureza do coração amante e sedento de união,
tem o seu primeiro fruto na graça do louvor,
na prece incessante dos lábios e do espírito,
traduzida no silêncio do respirar meditativo,
cantada no júbilo da liturgia eclesial.
Não há contemplação sem a dúplice essência da oração
que convida a alma a fazer-se puro olhar amoroso
e depois grito implorante e canto de gratidão comovida.
Clara não fez mais
que “meditar os imensos benefícios” Testamento de Santa Clara 6
dos quais se sentia repleta, gratuitamente,
e percorrendo devotamente os rastros da memória
vestiu-se de reconhecimento
para “bendizer e louvar”. Testamento de Santa Clara 22
A contemplativa não reza porque precisa de algo
a exigir ao Deus mágico e prestigiador,
que sempre o homem tenta fazer à sua imagem e semelhança.
A sua oração é o fio ininterrupto de comunhão vital
que guarda e testemunha a sua pertença ao Amor,
é o oxigenar-se contínuo à pureza da canção divina,
é o imergir-se nas vagas de um oceano de paz.
Orando, ela realiza a sua obediência ao Pai
e aprende ao olhá-lo com o conhecimento filial de Cristo,
até derramar-se no singelo grito dele: ‘Abba’, Paizinho!
Não é a sua oração um permitir-se oraçõezinhas privadas,
plenas de suspiros e de Ave-Marias
recitadas de modo expresso.
Se Deus é Pai, é também mãe que ama ternamente
“o seu filho pequenino”,  Processo de Canonização de Santa Clara 20
há somente de olhá-lo com admiração e amor,
seguro de sua força e ternura, feliz de dizer-lhe graças.
Clara, que tinha familiaridade com a Palavra
e a meditava no coração longamente, era essencial nisto:
é o mistério de Deus a inundar a alma até o êxtase,
mais que a necessidade imediata
que lança humilde, de joelhos.
Certamente, só o amor e a necessidade,
quando são violentos,
ultrapassam todo orgulho: a humildade é o seu conatural.
Na contemplação, porém, é o amor que conta
e quando a alma-esposa é assim identificada a Cristo
até emprestar-lhe a boca, então pode voltar-se ao Pai
para pedir-lhe também “o pão cotidiano”.  Mt 6,11
Rezar é ainda mais um gesto de pobreza sorridente
que exige o silêncio e o vazio de todo o ser.
É necessário que o  ser humano experimente o que é estar só,
na ausência de toda segurança, na nudez de seu coração,
para intuir o mistério de uma Presença vivificante
e deixar brotar no íntimo o mudo apelo e o louvor.
Eis porque a claustral se retira no seu deserto.
Procurar um lugar retirado é próprio de quem ama,
porque de sua natureza o amor se cobre de pudor e de segredo,
como uma ação sagrada, e tal realmente torna-se
toda verdadeira manifestação do amor: uma divina liturgia.
Mas não se rezou verdadeiramente,
se no silêncio do local físico
se verificou o carrossel das inquietas vozes interiores,
aquela confusão de paixões humanas
em meio à qual Deus silencia.
Na vida claustral a oração ocupa todo o tempo,
mas privilegia as horas matinais e da noite
como fazia Jesus em sua vida terrena. Lc 4,42
Colocar o louvor “ao raiar do dia”,
antes que a preocupação da ação prenda o espírito,
é proclamar o primado de Deus antes de todo o resto.
E oferecer as primícias do ser e do tempo
à pessoa amada, é delicadeza de amor.
Também “passar a noite em oração” Lc 4,42
tem um sentido simbólico profundo,
ainda que não diga muito
à mentalidade prática do mundo ocidental.
A noite é feita para dormir, pensam as pessoas honestas,
ou no máximo, para divertir-se, para quem pode se permitir.
Porém, é na noite que surpreende a todos,
aquela da incerteza e da prova, que é urgente rezar
para resistir à debilidade da carne,
que aprisiona a alma de tristeza, de desânimo, de medo.
Mas a noite é também o tempo da intimidade, da união,
em que a esposa procura “o amado de seu coração”.  Ct 3,1
Sempre amor e temor se envolvem no mesmo sombrio mistério
onde pode florescer a vida ou consumar-se a morte.
E não é talvez a oração o consumir-se de desejo
que mantém a alma suspensa como numa noite incessante
na espera do encontro jubiloso com Aquele
“que é o bem mais duradouro e definitivo”?  Terceira Carta a Santa Inês de Praga 20
Porém a filha de Clara não reza somente sozinha;
é chamada “a dar vivas ações de graças” Testamento de Santa Clara 4
com o coro das irmãs e o respirar orante da Igreja.
O estar rezando juntos não é por haver mais vozes diante do Onipotente,
como se a súplica de tantos tenha mais peso
que o pedido de um só diante dele;
como se Deus, ouvindo um coro bem forte,
acabasse por convencer-se
que está toda a humanidade a seus pés.
Rezar juntas é a nós que diz muito porque aponta
a realidade crida, esperada, desejada ardentemente,
da comunhão com o Amor e entre nós.
E quando a aponta, a visibiliza, a suplica, a produz.
Que cruel ironia seria
entoar concordes os salmos de louvor
se depois o Amor invocado,
que tem ouvidos sensíveis,
percebesse o enfadonho desafinamento
das discórdias do coração.
Rezar juntas
é oferta de amor e reconhecimento
porque é contagiar os irmãos
da própria alegria de viver,
é reconhecer-se
um sob o olhar unificante do Pai
e legitimar aquela unidade de vozes
em unidade de vida .
Rezar em comum é fazer sobre a terra
a prova geral da inefável sinfonia do céu.


A graça do trabalho

 

Ainda que a vida contemplativa expresse essencialmente

o sentido religioso do ‘repouso’,
permanece no mundo atual
como um injustificado lugar de ócio improdutivo
que faz qualificar por fuga o comprometimento de oração
e por conveniente álibi a profissão de pobreza.
Mas Clara, como Francisco, sabe que no projeto de origem,
o homem e a mulher atendiam ao cuidado das coisas criadas
mais como o menino que se orgulha de acompanhar o pai no seu trabalho,
oferecendo-lhe os instrumentos,
do que como um produtor, preocupado de vencer as concorrências.
Este olhar inocente sobre o trabalho do homem
que o transporta ao sabor de jogo, anterior ao pecado,
está nos olhos de Clara quando pede às filhas
a quem “o Senhor deu a graça de trabalhar”, Forma de Vida 7,1
de ocuparem-se qualquer hora do dia num serviço
adaptado às qualidades de cada uma e útil a todas,
“que cada uma devera realizar
com as próprias mãos”, Forma de Vida 7,3
como se as mãos do ser humano e aquelas de Deus
se entrançassem num único gesto de criação.
Realmente o trabalho é graça e não mais peso
para a criatura nova, resgatada por Cristo ressuscitado.
Na redescoberta evangélica de Francisco e de Clara
o trabalho volta a ser sinal de participação filial
do ser humano no poder infinito de Deus,
na sua fantasia criadora de toda beleza;
é alegria de colaborar para construir a vida
em si e fora de si,
no uso respeitoso da natureza e de suas leis
para celebrar o amor com o dom generoso de seus frutos.
“O trabalho é dom revelado”,
disse o enigmático profeta Gibran.
E verdadeiramente não há, para quem ama,
experiência mais doce
e mais exaltante que trabalhar
juntos pelo mesmo ideal,
e ver sair da fadiga comum
a obra-prima, por pequena que seja, da mente e o braço,
que cada um ofertou para a alegria do outro.
Então o trabalho é parte da contemplação
Porque, se de um lado esta convida à adoração,
isto é, de estar de boca aberta, maravilhados
diante da obra de arte de Deus,
num arrebatamento amoroso que deixa imóveis,
de outro, é audaz tentativa de imitação,
como sucede à criança que imita
aquilo que fazem papai e mamãe,
sem preocupar-se de quanto o consegue,
mas feliz de restituir a eles a imagem recebida
numa resposta imediata de puro reconhecimento.
Assim, não existe sombra de intento utilitarista
no convite de Francisco e de Clara ao trabalho.
A Clara preocupa somente
que se afaste o ócio prejudicial
e não se apague na alma, pelo afã,
“o espírito de oração e devoção”,  Forma de Vida 7,2
que é o cume e o sentido de sua escolha,
porque também o trabalho torna-se oração
e não desvia o olhar do rosto do Amado.
Pode-se dizer ‘te amo’ de tantas maneiras diferentes,
e o cansaço é repouso se colore de amor.
Francisco admoesta os seus irmãos
a não empreenderem o trabalho “pela ambição
de receber a recompensa”; Testamento de São Francisco
ele sabe quanto é fácil ao ser humano a cega avareza
que mantém para si os resultados da própria ação,
e viu os efeitos nocivos para a liberdade e o amor
do apego ao dinheiro,
precisamente em seu pai.
É melhor andar mendigando de porta em porta
antes que trair o significado divino do trabalho
e fazê-lo carga de escravo e corrente aos pés.
Livre como um pássaro torna-se o ser humano
que entra no ‘jogo de amor’ da criação
somente para tecer o seu ninho com fios de erva,
só para recolher os grãos do alimento cotidiano,
mas não para construir celeiros para acumular.
Também na visão de Clara,
a liberdade do amor está acima de tudo,
e o trabalho é uma graça somente se não a mata.
Então é também belo que o toque da campainha
ressoe anunciando tanto o trabalho quanto a oração:
é sempre um chamado de amor ao qual se responde sim.

A graça da fraternidade

O dom mais alto que a experiência contemplativa de Clara
ofertou à Igreja e a todo o mundo,
é o testemunho de uma fraternidade evangélica
comparada intensamente àquela vivida
pela primeira comunidade cristã,
feita “um só coração e uma só alma” At 4,32
no apaixonado seguimento do Senhor Jesus.
Francisco e Clara propriamente não pensam em seguidores;
agarrados pelo idêntico Amor, formados um nele,
deixaram-se suspender pelo vento impetuoso do Espírito,
e só de repente se apercebem
que se estendeu o contágio de sua utopia.
Entre “as irmãs que o Senhor lhe deu” Testamento de Santa Clara 25
Clara se põe então como serva, irmã e mãe,
consciente de que verdadeiramente
no interior daquela humanidade concreta e variada
se encarna para ela o Verbo amante e crucificado.
Contemplar não é sentimentalismo ou poesia,
não é perder-se em representações vazias
de um relacionamento romântico,
pessoa a pessoa com o Onipotente,
como se f os se possível  atingi-lo em comunicação direta.
Não, Deus não se deixa tocar como um objeto,
nem pela inteligência, nem pelos sentidos humanos.
Ele caminha sobre a terra, mas como um incógnito;
o ser humano O pode encontrar somente no ser humano
desde que, em Cristo,
assim escolheu encontrar-se com Ele.
E é sob aqueles despojos miseráveis e grandes
que solicita a fé e o amor de cada um.
Alguém pode crer de amar a Deus embalando-se nas imagens
de sua fantasia religiosa ou nos ardores da sensibilidade
facilmente emocionável diante do ‘magnífico’ natural
como do ‘sacro’ litúrgico, mas não está seguro
do engano de que seja somente a projeção
de seu desejo de grandeza e beleza e potência e infinidade.
Clara, crescida na escola de Francisco,
sabe que quando se consegue ler na criatura humana
- talvez desfigurada pelos limites inevitáveis
do egoísmo, da superficialidade, da ignorância, do pecado –
o rosto do Amor traído, “desprezado, injuriado,
e em todo o corpo repetidamente flagelado” Segunda Carta a Santa Inês de Praga 20
e posto à morte, então se pode gritar com certeza:
“Nós temos conhecido e crido no amor”. 1Jo 4,16
Não há muito para crer se a pessoa a quem se diz ‘te amo’,
com a qual se reparte com alegria o pão da vida
e se inebria do vinho da familiaridade,
é aquela que parece saciar plenamente o vazio da existência
e que gratifica com a evidente, incessante oferta de si.
Mas há tudo para crer quando se diz ‘te amo’,
lá onde não há algo de amável,
onde parece  perder o próprio dom numa mão furada
e de desperdiçar a água da generosidade;
É ali que se aprende verdadeiramente
o que é o ‘dispêndio amoroso’,
o segredo da pródiga liberalidade do Amor.
Sobre esta fé, Clara não teme de lançar-se com as irmãs
no único fogo devorador da paixão de Deus,
que dos diversos elementos aos quais se une
faz uma só chama incandescente para a festa de todos.
E porque não se pode conservar escondido um incêndio
nem conter o respirar do bem no seu efundir-se,
Clara pede às irmãs de serem uma para a outra
uma manifestação de Deus: “aquele amor
que tendes no coração
demonstrai-o externamente com os atos”. Testamento de Santa Clara 59
Mas a vida fraterna é uma graça
não tanto por aquilo que dá a cada uma,
de segurança, de sustento imediato,
de ajuda física e moral;
é uma graça sobretudo por aquilo que pede de si.
Se é somente no relacionamento que o ser humano
conhece a si mesmo,
se é pela ação dos outros que se livra da casca limitada
em que se esconde a pérola da verdade,
como não render graças a quem, estando perto,
o provoca àquele amor que, exigindo o tudo e o em toda parte
do dom silencioso e gratuito da vida,
o faz autenticamente viver e saborear a sua liberdade?
A fraternidade é o termômetro que verifica
o grau em que uma criatura é pobre, casta, obediente,
porque alguém não sabe, até que é só,
se está andando para cima ou descendo pelo caminho.
Mas é quando o vizinho o despoja das forças e do tempo,
dos bens exteriores e das pretensões interiores de bem,
que pode medir a densidade de sua pobreza.
É quando a fome de amor do outro o arranca
à satisfeita pureza de um coração mantido em gelo
e lhe pede o comprometimento até o espasmo,
que aprende a conhecer o valor da castidade.
É quando obriga-o a ver com os olhos de um míope
aquilo que ele crê de perscrutar com lucidez,
que sabe as exigências abismais de sua obediência.
E ignora o que seja a beatitude exaltante
de alcançar somente os solitários cumes do espírito
quem não desce a se aquecer na lareira da fraternidade.
Clara, porém, é demasiado mulher amante e concreta
para iludir-se que uma semelhante graça
não custe o esforço paciente e renovado
de toda uma vida. Por isso, quer as irmãs
“solícitas em conservar sempre reciprocamente
a unidade da incansável caridade”. Forma de Vida de Santa Clara 10,7
Então fraternidade é alegria
de condivisão total,
onde isto não significa dizer que tudo ‘é meu’,
mas é dizer do próprio,
também o mais íntimo, ‘é teu’.
É alegria de fazer-se novos
todo dia um para o outro
no generoso perdão recebido e doado.
É alegria de ser
continuamente salvos pelo Amor
e de ascender juntos no tempo,
mantendo cada uma bem viva
a pequena chama de sua fidelidade,
rumo ao reino dos céus
onde o amor não tem mais sombras nem demoras.

A graça da fecundidade

Ter uma descendência numerosa nos séculos
era a esperança de Abraão e de Sara, como sinal prometido
de bênção, pela sua fidelidade ao Altíssimo.
Mas estes morreram “tendo somente visto
e saudado de longe” Hb 11,13
a realização do sonho de uma posteridade na carne.
A Francisco e Clara, porém, o novo casal
criado para desfazer os torrões da vinha do Senhor
gerando espiritualmente na nudez da fé,
é garantida a graça de uma inexaurível fecundidade.
Assim, a fonte secreta brotada de São Damião,
por veias subterrâneas conhecidas somente ao Espírito,
é jorrada nos séculos em todos os continentes da terra,
a cantar em línguas, como um novo Pentecostes,
“as grandes obras de Deus”. At 2,11
Clara não só entrevê, mas vive estremecida e exultante
o dilatar-se  milagroso de sua maternidade
e enquanto reconhece que “o Senhor por sua misericórdia e graça
nos multiplicou assaz”, Testamento de Santa Clara 31
lança humilde e perseverante a sua água
para orvalhar o jardim da Igreja
até às fronteiras missionárias de todo o mundo,
quais “colaboradoras de Deus e sustento dos membros débeis
e vacilantes de seu inefável Corpo”. Terceira Carta a Santa Inês de Praga 8
Se é olhando a nascente que se pode medir a foz,
de uma nascente como Clara, quem a mede jamais?
O valor escondido da água jorrada em Assis
e corrente nos séculos em mil riachos novos,
apesar das inevitáveis turvações
que, como as sombras, têm a finalidade de ser propositadamente
para fazer ressaltar a luz de uma obra-prima,
está talvez recolhido naquele breve,
decidido convite evangélico
que a toda jovem mulher atraída a transpor
o limiar de um mosteiro, Clara ainda hoje repete:
“que vá e venda todos os seus bens e esforce-se
por distribuí-los aos pobres”. Forma de Vida 2,7
Somente assim, despojada de tudo, poderá ser acolhida.
Não há como este simplíssimo gesto,
que dá vertigens ao homem preso a si mesmo
e abre sobre o risco total de uma imprevisível liberdade,
a esgotar as forças juvenis de uma geração
num estremecimento de pasmo e de desejo:
‘Se é por aqui que passa o caminho da alegria, eis-me aqui’.
‘Paz a ti’, responderá toda vez a saudação franciscana.
Mas aquele gesto de pobreza absoluta que dá a paz
e é o segredo da fecundidade da família de Clara,
não se coloca só ao ingresso na vida contemplativa,
como se fosse uma cavalheiresca aventura de um dia,
na qual lançar-se ao desbaratamento, sem pensar no amanhã.
Clara sabe como é fácil ao ser humano retornar à oferta,
sentar-se ao longo do caminho e voltar atrás
“depois de ter posto a mão no arado”.  Lc 9,62
E é por isso que vê toda sua plantinha em rebento
como aquela que, “com andar veloz e passo ligeiro,
com pé seguro que nem à poeira permite
retardar o andar,
avança confiante e alegre”  Segunda Carta a Santa Inês de Praga 13
sobre o caminho áspero do seguimento de Cristo.
Toda a pedagogia de Clara está aqui:
caminhar para não estagnar.
Antes, correr e quase voar, porque o amor exige.
A pobreza da caminhada é mais exigente até
daquela da partida, se nem à poeira é permitido
de servir de empecilho à alma chamada pelo Amor.
Assim não há tempo, nem para a tristeza nem para a saudade;
quem corre descobre mais força
no sorriso pensando na meta.
A alegria franciscana
não é como o açúcar
sobre a superfície de um doce gostoso.
Ela está no princípio, no meio, no fim
de todo o caminho espiritual de uma filha de Clara,
empenhada para sempre a “não permitir
que nenhuma sombra de tristeza
lhe envolva o coração”: Terceira Carta a Santa Inês de Praga 11 
se derrama lágrimas, esconda-as no íntimo;
o rosto, que é de todos, diga somente a alegria.
Porque Deus é, e isto basta para sermos felizes
e se Deus é alegria, não se deve apresentar-se carrancudos
ao seu serviço; e não há desculpa que valha,
nem aquela do próprio triste e insuportável pecado,
do momento que, precisamente tão miseráveis,
somos tão amados.
Correr, portanto, com fidelidade e alegria:
eis o compromisso!
E porque não se extingue no tempo o ardor da competição
na qual Clara e Francisco, por primeiro, se deram a mão
para correrem juntos, pobres e felizes, para o Amor,
é confiado aos seus filhos e filhas, ao longo da história,
procurar sempre o encontro, fecundo de colaboração,
para revelar ao homem e à mulher a que altitude
são chamados, no mistério de sua unidade,
e como dentro de seu mistério guardam o sorriso de Deus.